Rebecca Sharp e Tadáskía, 2022

Quimera que paira

Em parceria com Sé galeria
Curadoria e texto: Germano Dushá

29.08.2022 - 13.12.2022
Agendamentos via [email protected] Baixe aqui o catálogo da exposição.

Tadáskía, other I, 2022 © Opoente Filmes. Furniture design © Alberto Rheingantz
Cabeças de leão, de cabra e de serpente; asas de dragão ou de galinha; fogo pelas narinas e feitiços da língua!
A imagem de uma fera mitológica de natureza híbrida detentora de poderes mágicos, pairando sobre nós, imprime contornos ao assombro dos enigmas que correm entre este mundo e tudo mais que é intangível. A figura da Quimera, pintada e esculpida desde a Antiguidade de incontáveis maneiras, sobre a qual se narram infindáveis lendas e se tecem infinitas leituras, remixada à exaustão, provoca e propõe uma incógnita fatal, um golpe esfíngico com muitas bocas para devorar.
Rebecca Sharp, 2022 © Opoente Filmes
Sinônimo de invenção, absurdez, fantasia, fábula e devaneios da imaginação, a Quimera pode figurar como síntese para nossa aproximação dos projetos de Rebecca Sharp e Tadáskía concebidos especialmente para o contexto deste casarão — colossal e complexo — e da Coleção Ivani e Jorge Yunes, um acervo tão extenso quanto eclético. Por meio da absorção e da regurgitação das imagens e de determinadas problemáticas, as proposições de Rebecca e Tadáskía partem de diferentes disparadores imaginativos, a fim de lidar, de modo crítico, com as qualidades físicas e conceituais dos cômodos e de certas peças desse espaço. As artistas, cada uma à sua maneira, ativam enigmas relacionados diretamente com esse lugar, provocando e oferecendo chaves de compreensão para sua arquitetura e para os objetos que o povoam.
Em comum, esses projetos trazem ideias ligadas à ampliação do tempo e do espaço, dando origem a canais pelos quais se deslocam mistérios que colaboram para certa densidade atmosférica. Desse modo, a bruma, que se anuncia na primeira sala da exposição, flutua e se dissemina pelos demais espaços, se adensa e ganha corpo conforme caminhamos e desvendamos cada uma das intervenções entre a profusão de artefatos, quadros, esculturas, móveis, tapetes e luminárias ali presentes.
Tadáskía, vestida negro II, 2022 © Opoente Filmes
Tadáskía apresenta um grupo de trabalhos reunidos sob o título Abdução. Interessada pelo percurso entre o tátil e o etéreo — que não é visível mas intuído, e ao qual se pode dar forma —, a artista lança mão de questões subjetivas para criar sugestões e situações que ampliam o entendimento dos fenômenos terrenos. Seus trabalhos surgem da relação corpórea e social com a casa: na percepção das múltiplas temporalidades que a compõem e na discussão acerca das complexidades que envolvem a presença negra e a presença trans — seja nas representações históricas, na produção da arte ou nos fluxos dos corpos.
No vídeo homônimo*, que tem como cenário diversos espaços dessa residência e é dividido em seis canais — um para cada cena que o compõe —, testemunha-se uma série de ações que envolvem duas personagens — performadas por Tadáskía e Sabine Passareli. Num breve recorte de tempo, entre duas noites, elas se comunicam por telepatia e por movimentos sutis, trocando informações sobre sua condição e sobre os fenômenos que ocorrem ao redor delas. Tramam com a palha, ofertam, uma à outra, um pequeno banquete de frutas e suco preto, desenham sobre as costas nuas uma da outra e, enquanto uma desenha, vendada, a outra observa o céu com um telescópio. *Abdução (2022) é um trabalho colaborativo, filmado por Lorena Pazzanese e Octávio Tavares, com trilha sonora de Pitter Rocha e efeitos especiais de Thales Cardoso. 
Rebecca Sharp, 2022 © Opoente Filmes
O desenho, aliás, aparece de diversas maneiras. De modo mais direto e literal, mas como um enorme grafismo — uma espécie de invocação —, nascido do cuspe com suco preto derramado no piso de um pátio, e também como o espectro de um pássaro disforme que paira sobre o casarão. A galinha preta, ou ave mítica, sobrevoa o enredo como um presságio vivo, uma referência livre a Sankofa*. Essa anunciação alada conecta-se com o retorno ao passado como meio de alterar o presente e fabricar o futuro, aludindo portanto à ideia de que “é possível retornar para um lugar por onde já passamos para seguir adiante como queremos”, nas palavras da artista. Por fim, o desenho ainda se faz ver como coreografia e feixe de luz, quando as moças, uma de frente para a outra, coreografam uma dança carregada de simbolismo, conjecturando uma saída do lugar, uma mudança radical. Então se desmaterializam em pontos luminosos, para, no ato final, ascenderem — ou serem abduzidas.
Ao prosseguir com essa dança das formas, os eventos do vídeo se transformam num conjunto de desenhos sobre tecidos expostos em suportes singulares, como portais-estandartes que se destacam em meio ao acúmulo visual. E também em um “arranjo”, instalação composta de esteiras de palha — entremeada por bambu, pó de rosto, frutas e arames — que encontra seu lugar no centro da Capela da casa, em meio à aura dramática carregada de inúmeras imagens e adornos da tradição cristã. Esses trabalhos se dão no fio da navalha entre leveza e firmeza. A liberdade da abstração dá sentido a composições pulsantes, repletas de movimento, associadas tanto a elementos orgânicos quanto imateriais, e imbuídas das dinâmicas de transmutação. *Sankofa é um dos Adinkras, conjunto de ideogramas utilizados para sintetizar ideias filosóficas e provérbios, pertencente originalmente aos povos de língua Akan, da África Ocidental (notoriamente os Ashanti). Simbolizado por um pássaro mítico que voa para a frente olhando para trás, seu significado se relaciona com “voltar e buscar”.
Tadáskía, still do vídeo Abdução, 2022 © Lorena Pazzanese
Ao abordar a coleção por meio de recortes de raça e de gênero, Tadáskía propõe também a modificação do salão de entrada da casa, a “Sala Império”, usualmente habitada por objetos e retratos notórios dos protagonistas brancos da história oficial do Brasil. No lugar dos vários quadros de imperadores e aristocratas, emergem duas telas de autoria desconhecida, que representam mulheres negras em visualidades distintas. A primeira é uma figura espectral, anônima, que carrega certo tom de aborrecimento ou melancolia. A segunda traz uma representação da Virgem negra, transcendental, numa imagem religiosa repleta de altivez e de esplendor.
O projeto de Rebecca Sharp instaura um jogo no interior da casa. Tributária da metafísica e do surrealismo históricos, a artista inicia por uma intervenção pontual na sala principal. Seus Poles cruzam-se sobre um espelho central, interferindo em sua qualidade arquitetônica e capacidade reflexiva. Esses cajados, adornados com a combinação de muitos tipos de materiais, simbolizam, de forma mágica, a presença e a consciência humana, primeiro, no interior do espaço pictórico e, depois, como peças tridimensionais. Ao lado, um tramado de cordas se apossa de uma cadeira no centro da sala. A trança, por fim, extrapola o objeto e serpenteia, animista, em direção a uma pequena sala encapsulada pela artista
Rebecca Sharp, Tadáskía e Germano Dushá, da esq. para dir.
Sobre as artistas
Rebecca Sharp (São Paulo, 1976) vive e trabalha entre os EUA e o Brasil. Em seu processo poético-espiritual, combina práticas pictóricas e meditativas. Sua obra trata de uma variedade de planos astrais, mundanos e, atualmente, o encontro deles: mundos insólitos recobertos por abismos em matizes vívidos que convivem de modo vibrante. As telas funcionam como mensagens codificadas, provenientes de seu espaço anímico. Suas delicadas composições surreais surgem quase instintivamente uma vez que o tema inicial se mostra. Segundo Rebecca, "o que percebo hoje é que o trabalho do artista consiste em criar e intervir em universos não visíveis. Muito antes da pintura estar pronta, a criação e a dissolução de uma galáxia já aconteceram. A obra em si é o mantra condensado, visível e tátil do que não pode ser explicado. É um diário de bordo, um documento terreno, uma chave de ignição". Rebecca formou-se em teatro e artes dramáticas na Goldsmiths, da Universidade de Londres. Em 2018, participou da 33.ª edição da Bienal de São Paulo, Afinidades Afetivas, na sessão de curadoria de Sofia Borges. Em 2019, esteve em residência no renomado Instituto de Artes da Califórnia. Em 2021, fez a exposição individual Tools for the Wonderland (Mendes Woods, Bruxelas) e, em 2020, fez sua primeira exposição individual, Trago a mensagem do destino, na Sé, com curadoria de Tiago de Abreu Pinto.
Tadáskía (Rio de Janeiro, 1993) é uma artista negra e trans que vive e trabalha entre o Rio de Janeiro e São Paulo. É formada em Artes Visuais Licenciatura pela UERJ (2012-2016) e mestra em Educação pela UFRJ (2019-2021). Seu trabalho em desenho, fotografia, instalação e têxtil mobiliza paisagens inventadas e místicas. Através de sua prática, ela busca elaborar também as experiências imaginativas da diáspora negra, em torno de encontros familiares e estrangeiros. Realizou sua primeira exposição individual noite dia (Sé, São Paulo, 2022), curadoria de Clarissa Diniz. Exposições coletivas recentes: 37º Panorama da Arte Brasileira: Sob as cinzas, brasa (MAM, São Paulo, 2022), curadoria de Cauê Alves, Claudinei Roberto da Silva, Cristiana Tejo e Vanessa K. Davidson; Eros Rising: Visions of the Erotic in Latin American Art (ISLAA, Nova York, 2022), curadoria de Bernardo Mosqueira e Mariano López Seoane; JAIMES (Triangle Asterídes, Marselha, 2022), curadoria de Marie de Gaulejac; The Silence of Tired Tongues (Framer Framed, Amsterdam, 2022), curadoria de Raphael Fonseca; Are Artworks Contemporary? (Madragoa, Lisboa, 2022); Setas e turmalinas (Casa de Cultura do Parque, São Paulo, 2022), curadoria de Gisela Domenisnke; Semana sim, Semana não: paisagens, corpos e cotidianos entre um século (Casa Zalszupin, São Paulo, 2022) curadoria de Germano Dushá; Uma história natural das ruínas (Pivô, São Paulo, 2021), curadoria de Catalina Lozano; Os monstros de Babaloo (Fortes D'Aloia & Gabriel, São Paulo, 2021), curadoria de Victor Gorgulho; A máquina lírica (Galeria Luisa Strina, São Paulo, 2021), curadoria de Pollyana Quintella, 2021; O canto do bode (Casa da Cultura da Comporta, 2021), curadoria Galeria Luisa Strina, Sé e Fortes D'Aloia & Gabriel, Hábito/habitante (EAV Parque Lage, 2021), curadoria de Ulisses Carrilho; Casa Carioca (Museu de Arte do Rio de Janeiro, 2020-21), curadoria de Joice Berth e Marcelo Campos; Esqueleto (Paço Imperial, Rio de Janeiro, 2019-2020), curadoria de Analu Cunha, Marcelo Campos e Maurício Castro; Estopim e segredo (EAV Parque Lage, Rio de Janeiro, 2019-2020), curadoria de Gleyce Kelly Heitor, Ulisses Carrilho e Clarissa Diniz. Além de ter realizado a exposição em dupla com Leonilson no Auroras (São Paulo, 2020) e o open studio em formato expositivo Ocellets, durante a residência Homesession (Barcelona, 2022).
Sobre o curador
Germano Dushá é curador, escritor, crítico e agente cultural. Bacharel em Direito (Fundação Getulio Vargas - Direito SP) e pós-graduado em Arte: Crítica e Curadoria (Pontifícia Universidade Católica - São Paulo), trabalha principalmente com organizações culturais independentes e experimentações curatoriais, literárias e multimídias. É coordenador do Fora — organização pluridisciplinar focada em iniciativas culturais e estratégias institucionais, e do Genesys — seu braço voltado a projetos em formatos experimentais. Tem colaborado com instituições, galerias e publicações em diferentes países e, entre outros projetos, co-fundou o Coletor (2012-2016) — campo itinerante de ações culturais e práticas artísticas —; o Observatório (2015-2016) — espaço expositivo autônomo no Centro de São Paulo —; o um trabalho um texto (2016-2022) — programa expositivo de arte e produção textual contemporânea —; e o BANAL BANAL (2016-2021) — plataforma online de projetos de arte contemporânea.

Compartilhar

Whatsapp |Telegram |Mail |Facebook |Twitter